O dia em que fiz o que me pediram num processo seletivo: uma redação.

Henrique Bandeira
4 min readJun 18, 2018
  • Advirto que o texto adiante é uma “quase” obra de ficção. “Quase” na medida em que a maior parte do relato é fruto de um desejo meu acerca do que poderia ter acontecido e aconteceu só em partes.

Certa vez participei de um processo seletivo para o “cargo” de estagiário num renomado escritório de advocacia de minha cidade, no qual me pediram que escrevesse “uma redação” numa lauda de papel A4, sem qualquer instrução adicional. O resultado foi o texto abaixo.

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Pediram-me que escrevesse algo nesta folha de papel A4, mas as instruções dadas foram poucas: “faça uma redação”. Foi só isto e um copo de café.
No momento em que me dirigiram essa diretriz, refleti:

“ora, mas escrever uma redação à la prova de vestibular
ou uma redação das que se exigem de um advogado de carreira, habituado ao dia a dia da profissão e suas preças processuais?”

Em que pese a dúvida (diga-se de passagem, conheço poucas pessoas que não são do “mundo jurídico” que utilizam essa expressão tão empoada, “em que
pese”
), hesitei ao cogitar saná-la, haja vista a expressão facial pouco convidativa da funcionária do escritório, que me pareceu disposta a dizer qualquer disparate se lhe perguntassem obviedades.

Enfim, comecei a escrever para, de certa forma, me desincumbir do ônus que me foi atribuído (aí está outra expressão característica
do juridiquês
) e não sei se estou agindo a contento (mais outra).
De um jeito ou de outro, creio que o objetivo geral a ser atingido mediante a colheita das “redações” de eventuais ocupantes da vaga de estagiário, que está sendo oferecida pelo douto escritório (este último adjetivo, admito, tenho uma queda por ele, mesmo sendo tipicamente nativo do juridiquês) não deve ser outra senão a de verificar o domínio de estruturas gramaticais por parte do candidato.

Imagino que, talvez, também seja razoável esperar a escolha pelo candidato por um tema de direito, até mesmo como um caminho natural a ser trilhado por quem se encontra em meados de um curso de bacharelado em direito e a brigar por uma vaga de estágio, afinal, a regra hipoteticamente elaborada é a de que os que optaram por tal curso, por consequência, gostam de ler.

Ocorre que a proposição lógica acima já vem se mostrando desacertada há bastante tempo. A quantidade de estímulos com que hodiernamente
os jovens (e não só eles) se deparam prejudica não apenas a concentração no que é importante, mas até mesmo a clareza no julgamento seletivo realizado,
ou seja, no acerto quando da opção pelo que ler e, não menos importante, pelo que não ler.

De toda sorte, acredito que o que o setor de departamento pessoal (nome gourmetizado atualmente usado para designar os Recursos Humanos) espera é a chegada ao escritório de alguém que leia. Que leia não apenas comentários de vídeos em Facebook (embora eu tenha, admito, adquirido certa compulsão por esta leitura, tendo em consideração o prazer que aufiro ao tomar conhecimento dos “barracos” lá travados), senão também textos jurídicos e uma posição efetiva do candidato acerca de suas pretensões na carreira.

Dito isso, posso fazer aquilo que se espera (supondo, obviamente, que eu esteja correto em minha suposição) ou ir um pouco mais além e discorrer acerca de minhas qualificações. Como não posso eleger esta segunda via, já que tais qualificações não são de espantar sequer um caixa de McDonald’s (não que eu tenha nada contra caixas de McDonald’s, tenho até alguns amigos que são), optarei pela primeira via, mais conservadora inclusive.

Ainda não tenho muito domínio sobre o funcionamento da máquina pública, mas arrisco dizer, “sem medo de ser feliz” como dizem os populares (mesmo que equivocada a reflexão, afinal, não se deveria ter medo de ser feliz, mas de ser triste) que aprendo com certa rapidez e posso ser eficiente igual a um japonês na roça, como diria Jessier Quirino.

Em suma, tento vender meu peixe, e tudo o que gostaria é de mais uma oportunidade, a fim de que eu pudesse finalmente agarrá-la e não deixá-la escapar, tal como escapuliu de minhas mãos o tambaqui anteontem no pesque-pague com minha família.

Peço perdão pelo tom de descontração adotado, mas creio que ele é fundamental num mundo tão repleto de “em que peses” e azedumes “de estilo”, afinal, nada custa dar um pouco de coloração num papel A4 que é só branco se nos lembramos que há mais outras cores para além de preto e cinza.

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