Henrique Bandeira
10 min readMay 1, 2019

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O HUMOR E A ROMANTIZAÇÃO DO SOFRIMENTO ALHEIO

Sempre fui fã do humor brasileiro e cresci assistindo (ouvindo também) gente de peso como Zé Lezin, Mução, Chico Anysio, Tom Cavalcanti, Ceará, o vai e vem de personagens da Praça é Nossa, Escolinha do Professor Raimundo, os trapalhões e tantos outros. Sei lá, acho que o humor pode ser algo universal (como Chaves e Chaplin, por exemplo), mas a regra é a de que ele aborde questões que vêm do local em que o humorista está inserido. Tanto é que esses profissionais normalmente se habituam (também) a fazer piadas sobre a política, os costumes da região e por aí vai.

Para ilustrar essa afirmação, pergunto: por que é que nós, brasileiros, muitas vezes não conseguimos entender piadas dos Simpsons, por exemplo? Porque são piadas direcionadas ao contexto norte-americano, de modo que é natural que a gente prefira o humor nacional ao humor estrangeiro, pela familiaridade e pela verossimilhança que a gente sente em face da piada brazuca.

Tem como a gente rir de algo distante, que vem da gringa? Dificilmente, né? A não ser que esse fato tenha alguma ligação com o Brasil ou que seja explicado num determinado contexto, tal como a piada do filme, da série.

Tanto é assim que os temas de piadas costumam ir das preferidas do tiozão (hoje já quase um vovô, com suas “anedotas” de loiras, bêbados, portugas e etc. que vinham em bancas de revistas há não sei quantos anos atrás) até as mais recentes (e enfadonhas a meu ver) piadas sobre o dia a dia do homem (ser humano) comum (vide stand-up comedies “modernosos”).

Não estou alegando aqui de forma inocente que não haja ninguém interessado em humor estrangeiro. Há. Acontece que a massa, o povão (o Seu Zé e a Dona Maria) indubitavelmente gosta mais do palhaço de circo. Prefere aquele que faz piadas sujas e tradicionais ao canastrão influenciado por talk shows americanos. Prefere o personagem caricato à cara limpa.

Existe espaço pra todos, é verdade, mas repito: o povão gosta mais de quem fala em putaria, gaia, bebida e demais fraquezas humanas. Tanto é assim que as novelas da Globo se repetem há decadas e décadas na base do “requentamento” de seus enredos com esses ingredientes mencionados e o povo adora. É a receita do sucesso!

Das MUITAS pérolas humorísticas do acervo brasileiro, há um grupo jovem (mesmo hoje seus componentes ainda são jovens) que se destacou enormemente na seara (no início dos anos 2000, pra ser mais preciso): o famoso “Hermes & Renato” (H&R).

Inspirado pelos exageros praticados nas atuações caricatas das pornochanchadas (idos dos anos 80) e pela hipocrisia presente na sociedade brasileira de uma forma geral e seus (des)valores, o grupo deixou de ser uma brincadeira de criança para amadurecer nos anos em que ficou no ar na MTV, tendo feito tudo isso de uma forma sagaz (link do documentário aqui).

Conscientes de que dispunham de uma renda muito limitada para produzir seu conteúdo (ousado demais para os padrões da MTV), os integrantes decidiram produzi-lo mesmo assim, criando algo intencionalmente escrachado, tosco, tal como numa “tiração de onda” de pré-adolescentes, que foi de fato a origem do seu processo criativo.

O resultado era (quase) sempre um figurino reduzido a poucas peças de roupa (as peças repetiam-se em vários episódios), com personagens femininas sendo interpretadas por homens barbados e suas vozes de falsete, um único ator a desempenhar vários personagens num mesmo contexto, e sets de filmagens substituídos pelas casas dos próprios humoristas ou pelos bairros em que residiam (vide as muitas “abordagens policiais”). Os efeitos especiais, se existissem, eram o mais amadores e “tosqueira” possível.

Curiosamente, se as piadas produzidas nessa época fossem proferidas hoje, recheadas de palavrões e humor negro como eram, certamente causariam grande rebuliço na patrulha do politicamente correto (vide o Negão pisando no cocô do hit “Pira-Pirô” e a bichinha pobre que estrelou “O Proxeneta”), patrulha essa criada pela famigerada esquerda “cirandeira”, a qual vem promovendo um verdadeiro censo sobre tudo o que é produzido pelo humor brasileiro nos tempos hodiernos. Mas enfim, essa é uma outra história e fica para outra oportunidade.

O importante para nós é que, das milhares de esquetes escrachadíssimas e hilárias produzidas pelo grupo H&R, houve uma em especial, denominada de “Brasil Mulambo”, que merece destaque. Tal episódio apresentou-nos o carismático “Charlinho, o menino que só queria estudar” (interpretado pelo talentoso Felipe Torres).

Muito embora a esquete tivesse recebido esse nome bisonho de “Brasil Mulambo” (cuja vinheta era o trecho de uma música da banda Aviões do Forró kkk), provavelmente inspirado nos quadros de programas de domingo à noite que sensacionalizam a pobreza alheia, foi “Charlinho” que ficou marcado na memória de todos, afinal, mesmo o genial Fausto Fanti atuou nesse episódio apenas como ponte, a fim de que o Charlinho interpretado por Felipe Torres pudesse brilhar em suas troças.

Trata-se da história de um menino interiorano, barrigudo e pobre, que mora numa região bem afastada de sua escola (ou seja, BR bem típico). Para chegar até essa escola, Charlinho precisa enfrentar uma série de desventuras, dentre as quais, atravessar um rio caudaloso cheio de esgoto e ser “mordiscado” no dedo por uma piranha. Tudo isso, como alardeia o repórter, “somente para estudar”.

Fica nítido que a sátira, pura ironia, tem como pano de fundo a hipocrisia brasileira em elevar ao posto de admiração (palavras minhas para “romantizar”) as dificuldades enfrentadas pelas brasileiros pobres para atingirem determinados bens da vida — seja um Iphone ou a chegada à universidade pública — os quais são conquistados de forma muito menos tormentosa por outras fatias da população nacional (ou seja, classes média e rica).

É tão bizarra e sem sentido essa romantização que chega a ser engraçada — por isso a genialidade da sátira — palmas para o garoto que enfrentou tudo isso e não desistiu. Tá vendo Brasil? É só não ser preguiçoso que se chega lá!

Nesse Brasil de contrastes, tem-se de um lado uma criança que possui “de um tudo”: casa, comida, roupa lavada, “you name it” (a criança de classe média, aqui imaginada) e de outro uma criança que não tem nada disso e ainda vive e-x-t-r-e-m-a-m-e-n-t-e longe da escola e da civilização, num ambiente inóspito, o nosso herói Charlinho.

Ah, mas o menino faz de tudo pra estudar! Tá vendo, meu filho? Ele pega um bote, enfrenta piranhas, apanha três ônibus e etc, tudo isso para, no final do episódio, Charlinho se deparar com a escola fechada (uma greve municipal fora instaurada). E você aí Júnior, reclamando porque tem de vender chup-chup (dudu, sacolé, dê o nome que preferir) no sinal.

E aí vem um monte de sensacionalistas fazer reportagens desse cunho junto ao Júnior (personagem real, de carne e osso), explorando os esforços inócuos do menino em assistir às aulas enquanto vende os doces no sinal, para o deleite de todos e perpetuação dessa tese deturpada de ode ao sofrimento alheio, tal como ocorrido com o pobre Charlinho da ficção.

Mas Júnior tem de persistir, afinal, como diz a auto-ajuda fajuta e livresca que virou moda no Brasil, basta acreditar para alcançar os seus sonhos!

O que se questiona aqui não é a dificuldade enfrentada por si só. Não se quer que o outro desista e nem se deseja estimular o pessimismo, muito pelo contrário.

Apesar de não parecer, eu sinceramente acredito que esses caras são realmente heróis, por terem alcançado um lugar ao sol depois de tanta luta, mas o que não gosto é a forma como se transforma esse sofrimento num ingrediente para uma novela inspiradora. Como se fosse irrelevante ter de pegar um bote e três ônibus “só para estudar”. P$%&*, isso NÃO é normal.

Que todos nós enfrentaremos dificuldades diferentes na vida é fato, tanto por razões econômicas como físicas, emocionais, etc, pois NÃO SOMOS IGUAIS, mas não devemos naturalizar os excessos. O maior questionamento reside na mensagem MENTIROSA de que todos estão no lugar em que se encontram por mérito e na conclusão errônea de que O MÍNIMO EXISTENCIAL É DISPENSÁVEL. Sobre a teoria do mínimo existencial, ver aqui.

Não é porque João, atual Juiz de Direito, tenha tido que vender pipoca no sinal durante parte da sua infância, pra ajudar a sua mãe em casa, que nós devemos aceitar passivamente e como algo natural que outros Joões enfrentem essa mesma atribulação na infância pra poder “ser alguém na vida”. Afinal, infância é época de estudo e brincadeira. E só. Ou estou enganado?

Parece que estou vendo os chatos de plantão em possíveis comentários. Dirão que “é melhor que elas (as crianças) estejam vendendo pipoca no sinal do que roubando” ou o tradicional “eu trabalhei quando era criança e não morri”.

Meu caro imbecil incapaz de interpretar um texto, em nenhum momento eu advoguei em prol do crime ou profetizei que quem trabalhasse durante idades mais tenras sofreria de um mal súbito. Disse apenas que o MELHOR, o IDEAL, seria que as crianças e adolescentes não tivessem que enfrentar essa adversidade, ou seja, que não tivessem de trabalhar num momento não indicado para isso, que é a infância.

Como sei que alguns dirão que ainda que não vivemos no mundo ideal, mas no real (aqui é Capão Redondo, tru, não Pokémon, como diz a letra do rap de Racionais), adianto argumentando que, mesmo que o ideal ainda não tenha chegado, é nosso papel como seres conscientes seguirmos na busca dele, correto?

Ou é infantilidade dizer isso? Acho, inclusive, que o João que se tornou Juiz de Direito após ter vendido pipoca no sinal durante a infância tem o DEVER MORAL de atuar para que tantos Joões quanto possíveis não enfrentem a mesma infância dele. Mas essa também é outra história que devemos deixar pra outra oportunidade.

O que importa é que tem muito Charlinho por aí na vida real, mas normalmente o discurso ouvimos é invariavelmente aquele que transfere o foco dos problemas encontrado na precária estrutura do Estado e sua ineficiência em alcançar os menos abastados e provê-los do mínimo de direitos e garantias constitucionais para bradar aos quatro ventos que:

“tá vendo aí, basta você querer! É frescura reclamar do que você enfrenta todos os dias para desfrutar dos bens da vida, pois se você não os alcança, é porque não se esforçou ou não teve o mérito disso”. Isso quando não vêm com o famigerado “mimimi”.

P!#$ que o pariu! Só vai dizendo assim.

Acho risível isso, velho. O cara tem que sofrer feito um condenado SÓ pra chegar na escola e isso SIMPLESMENTE NÃO É UM PROBLEMA PARA A SOCIEDADE! Sei que é uma sátira, mas ela ironizou uma realidade existente.

Creio que a preocupação com o estado de um país sobe ao nível de alarme quando se tem de explicar o óbvio e, principalmente sátiras. E essa parece ser a situação.

Colocando as coisas em perspectiva: se um aluno A tem um transporte digno de sua casa até a escola e um aluno B não o tem, só esse fato já coloca um em posição de desvantagem e outro em posição de vantagem. É ou não é? É sintoma de comunismo dizer isso? Estou sofrendo da síndrome de Che Guevara? Espero que não, pois a minha adolescência já passou. Pra mim é raciocínio lógico.

Procuro dizer isso porque o argumento de muitos pretensos direitistas (pessoas que adotam uma teoria de direita bastante deturpada, ou seja, não é a direita toda, fica a ressalva) tem sido atacar tal argumentação sob a manta acusatória do “esquerdismo”, sua falácia preferida.

Sempre que alguém surge com uma argumentação que lhes parece “esquerdista” (esse guarda-chuva é bem amplo), passa-se ao deboche, à negação. Trata-se da falácia do poço envenenado, denunciada por Luis Alberto Warat, a qual consiste em envenenar um poço de ideias, a fim de que tudo aquilo que advier do mesmo certamente estará contaminado, de sorte que sequer é necessário ouvir o diálogo de quem professa esse conteúdo nefasto.

Antes que me acusem de petralha, esquerdista, mortadeleiro ou coisa que o valha, quero deixar claro que nós estamos falando aqui de conquistas civilizatórias históricas básicas, cuja falta os americanos (sempre citados como panteão do liberalismo pelos direitistas-pseudo-liberatistas-de plantão) certamente apontariam de imediato se ocorresse com um dos seus.

No Brasil de hoje não se pode mais exercer um raciocínio coerente sequer sem que se corra o risco de ser chamado de isso ou aquilo. Ou se é coxinha ou se é petralha. E parece não existir vida para mais além. Não se pode ter uma ideia à esquerda ou à direita sem que seja taxado de algum apelido pejorativo.

É a elevação da forma de raciocinar de um pirralho imaturo de 12 anos ao nível máximo, que se resume a essa dicotomia idiota. Mas o que se pode fazer? Prossigamos.

Logo quando comecei a fazer um brainstorm pra escrever esse texto, lembrei-me que essa esquete de Charlinho é nada mais nada menos do que uma sátira extremamente inteligente sobre essa abordada romantização, sendo esse o melhor exemplo prático — e engraçado — que eu consigo encontrar para evidenciar em que ela consiste.

Se buscarmos a definição da palavra “merecimento”, dentre os vários resultados possíveis, o que mais nos interessa é o seguinte: “o que torna alguém merecedor” (vide dicionário Priberam).

Nesse sentido, se você estuda para um concurso e é aprovado, parabéns. Você foi merecedor. Se treinou bastante e conseguiu reproduzir um prato na cozinha, o qual considerava difícil, os mesmos louros a você. Afinal, você se tornou merecedor de um resultado positivo pelo esforço que dispendeu e é exatamente isso que o diferencia da massa, a qual ficou parada no seu canto ou não fez tanto quanto você para alcançar esse êxito que é seu.

Veja que estamos dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

MUITO DIFERENTE é o ato de romantizar esse esforço quando se tem situações de abismo social e desatendimento a direitos e garantias básicos.

As verdadeiras histórias inspiradoras algumas vezes são manipuladas, a fim de que se aponte o dedo para o indivíduo e se diga: olhe para ele. Ele veio lá de trás e conseguiu. Se você está no mesmo patamar dele, é só se esforçar. O Ex-Ministro Joaquim Barbosa já foi usado como exemplo nesse sentido, em clara desonestidade intelectual do interlocutor que fez essa afirmação.

A propósito, legal assistir a esse vídeo do youtuber Spartakus Santiago falando do assunto.

A história do ex-ministro certamente é inspiradora, mas desconfio que ele, caso fosse perguntado, certamente não aprovaria a (des)contextualização em que o seu histórico de vida foi colocado, como chancelador de um status quo que, sem sombra de dúvidas, tem de mudar.

Eu não sei o que se passa no Brasil ou até mesmo se foi sempre assim, cheio dessa meninice dicotômica de petralhas Vs coxinhas, incapacidade de se interpretar um texto na íntegra, sem falácias e dessa naturalização de mazelas sociais, algo tão absurdo que eu chego a cogitar que a água mineral que nós Br’s tomamos todos os dias contém lexotan ou rivotril (ou os dois). É muita passividade e alienação pra um povo só, Jesus!

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